Sunday, February 15, 2009

A controversa intervenção governamental na crise

Na triste situação em que nos encontramos actualmente, com uma tremenda falta de liquidez financeira global e com contracções na produção e no consumo mundial, na negra espiral negativa que tão bem caracteriza o início das recessões, tem-se falado muito acerca da melhor forma de os governos suavizarem ou contrariarem esta crise e conseguirem inverter o rumo da economia mundial. Ainda não existe consenso na comunidade académica sobre a melhor forma de combater a recessão, havendo prémios Nobel e distintos professores de economia em ambos os lados da análise macroeconómica. Como tal, parece-me relevante deixar aqui uma descrição simples e imparcial das diversas opções que apresentam.

Convém deixar claro que há dois tipos fundamentais de acção governamental que têm sido discutidos recentemente e que é importante não confundir. Um deles, comummente chamado bailout plan, pretende contrariar a crise financeira, devolvendo liquidez aos bancos e reabilitando os sistemas de crédito dos quais depende o mercado mundial. Dito de outra forma, pretende voltar a activar os bancos, que neste momento estão para todos os efeitos “congelados”. Este plano contempla todas as medidas relacionadas com injecção de capital nos bancos, e a discussão a seu respeito prende-se principalmente com o valor a injectar e a melhor forma de o distribuir e controlar. O outro tipo de acção governamental, chamado stimulous plan, diz respeito à reanimação da economia, pretendendo estimular as empresas a produzir e a população a consumir. É uma espécie de estalada na cara da sociedade desmaiada, ainda não consciente das palavras de Roosevelt durante a Grande Depressão: “there is nothing to fear but fear itself”. Este plano contempla tanto os investimentos governamentais em obras públicas como as reduções fiscais, sempre com o intuito de levar a população a regressar ao consumo.


O bailout plan Norte-americano não nasce exactamente no mesmo contexto do que existe em Portugal, tendo complexidades acrescidas por se encontrar no epicentro da crise mundial (muitos dos bancos americanos têm bens directamente afectados pela crise no seu balanço, o que não se passa tanto em Portugal), mas é sem dúvida o mais relevante e que poderá ter mais impacto a nível mundial. Como tal, parece-me importante descrevê-lo em detalhe.
O anúncio da nova versão do plano realizou-se na semana passada pelo director do Tesouro, Tim Geithner. A apresentação foi mal recebida pelos mercados mundiais (queda de 5% na bolsa americana), não só por o plano ter sido muito mal explicado numa conferência de imprensa que nem teve espaço para questões dos jornalistas, mas também por ter dimensão inferior ao que era esperado. O plano consiste na injecção de cerca de 2,5 triliões de dólares no mercado financeiro, através de quatro medidas fundamentais:
1- Injecção directa de 1 trilião de dólares nos bancos de maior dimensão, sob a forma de empréstimo governamental. No entanto, os bancos que desejem aceder a este valor serão submetidos a um teste cuidadoso das suas contas para garantir que não cairão em situações complicadas de falência nos tempos vindouros. Um dos pontos mais delicados desta dívida prende-se com o facto de, no caso de os bancos que a receberem serem incapazes de operar da melhor forma, esta se transformar numa participação accionista com papel activo. Na prática, isto pode representar uma espécie de nacionalização disfarçada (o que é defendido abertamente por exemplo pelo Paul Krugman, mas que assusta imenso os defensores do mercado aberto que caracteriza a economia americana).
2- Compra, em parceria com privados, de 1 trilião de dólares em activos de risco das instituições financeiras (ou seja, compra dos investimentos duvidosos que ainda estão nas contas dos bancos). O objectivo da parceria com privados tem a ver com o estabelecimento do preço dos bens a adquirir (se o governo os comprar caro estará na prática a desperdiçar dinheiro dos contribuintes, mas se os quiser comprar demasiado barato não conseguirá convencer os bancos a vender). Este ponto deixa muitas dúvidas por esclarecer, e tem sido alvo de críticas por parte de analistas económicos e de mercados.
3- Compra de 1 trilião de dólares em empréstimos suportados por activos (por exemplo de casas, carros, empréstimos a estudantes…). Isto pretende manter o fluxo de dinheiro e de crédito na economia.
4- Compra directa de dívidas das agências de crédito habitação, com o objectivo de manter as taxas relativamente baixas e ajudar os cidadãos em risco a evitar o incumprimento nos seus empréstimos.
O equivalente português a este plano consiste no apoio da banca no acesso aos mercados financeiros internacionais. Para esse efeito, o estado serve de fiador dos bancos portugueses que procuram pedir dinheiro emprestado no estrangeiro, garantindo que se eles entrarem em incumprimento o estado ficará responsável pela dívida (cobra uma comissão de 1% sobre o capital adquirido, o que muitos consideram baixo). Trata-se de um plano consideravelmente mais modesto, mas talvez adequado à dimensão nacional.


O stimulous plan tem sido alvo de maior discussão. Tanto o mundo político como o mundo académico estão divididos entre os que defendem uma intervenção através de investimento público (desenvolvimento de infra-estruturas, utilizando mão-de-obra e combatendo o desemprego, ao mesmo tempo que se aumenta a competitividade do país) e os que defendem uma intervenção através de estímulos fiscais (pondo mais dinheiro no bolso dos contribuintes, aumentando o consumo e possivelmente reavivando a economia). Como tal, faz sentido analisá-lo com cuidado.

Do lado dos que defendem o investimento público está, entre outros, o prémio Nobel da economia Paul Krugman, bem como o grosso do Partido Democrata de Barack Obama. Muito baseados nos ensinamentos de Keynes, que foram centrais no combate à Grande Depressão dos anos 30, estes economistas defendem que uma injecção de capital em investimento público gera empregos “artificiais” temporários que serão suficientes para estimular o consumo e a produção, e como tal reavivar a economia, resultando a longo prazo na geração de empregos criados no funcionamento normal do mercado. É o mesmo princípio da reanimação cardíaca: um choque “falso” põe o coração a funcionar normalmente e a produzir os seus próprios estímulos eléctricos naturais. Além deste benefício de reanimação económica, os defensores do investimento público extraordinário acreditam que este permitirá construir um conjunto de infra-estruturas essenciais para o desenvolvimento futuro do país (no caso dos Estados Unidos trata-se fundamentalmente da construção de redes energéticas mais eficientes, da melhoria dos sistemas de telecomunicações, e do desenvolvimento geral das redes de transportes).
Os principais opositores do investimento público extraordinário têm três falhas principais a apontar a esta estratégia. Em primeiro lugar, defendem que a criação de empregos “falsos” contraria o desenvolvimento natural do mercado, desequilibrando a economia. Dito de outra forma, estimula o país a focar-se por exemplo na construção civil (que acabou de se provar estar sobredimensionada), o que dentro de alguns anos, quando terminar o financiamento através do plano de estímulo, poderá resultar numa nova redução do sector que se traduzirá em novos despedimentos. Em segundo lugar, dizem que o governo está na prática a “roubar” fundos ao sector privado, o que só traria benefícios no caso de o governo ser melhor investidor que o mercado (o que normalmente seria considerado absurdo, mas neste preciso momento é discutível dadas as origens da crise que vivemos). Em terceiro lugar, acreditam que a decisão de investir tanto dinheiro em tão pouco tempo, particularmente em infra-estrutura, vai na prática reduzir consideravelmente o impacto imediato do estímulo (que poderia ser mais intenso se fosse pensado exclusivamente no impacto económico e pudesse ser investido ao longo dos anos, em investimentos de retorno elevado), possivelmente comprometendo em absoluto os seus benefícios.

Do lado dos que defendem o choque fiscal está, entre outros, o professor de finanças John Cochrane, bem como o grosso do partido Republicano (com a excepção de dois ou três senadores). Estes senhores defendem que uma redução temporária (há até quem defenda uma redução permanente…) dos impostos levará os consumidores a partirem para os centros comerciais para gastar o dinheirinho extra que têm no bolso, retomando os níveis desejados de consumo e estimulando novamente a economia. O aumento do consumo traz o aumento da produção, e como tal a criação de emprego. Isto terá, defendem, a vantagem de permitir distribuir o dinheiro pelos sectores económicos certos (escolhidos pelos consumidores), sem as falácias associadas a um critério definido pelo governo. Por outras palavras, as pessoas vão gastar o dinheiro naquilo que lhes faz falta, contribuindo para o desenvolvimento da indústria necessária ao país e resultando num crescimento prolongado e sustentável (assumindo que não vão surgir mais bolhas especulativas…).
Os principais opositores a esta medida agarram-se à suposição de que as pessoas interpretarão a baixa temporária de impostos como dinheiro que eventualmente terão de pagar no futuro (a tão falada equivalência ricardiana diz que é indiferente em termos de efeito na economia financiar o investimento público com aumento imediato de impostos ou com dívida – na prática impostos no futuro…), e preferirão poupar o dinheiro extra para tempos de necessidade em vez de o consumirem. Na prática, isto significaria que uma redução fiscal não teria qualquer efeito de estímulo económico. No entanto, existem várias variantes a esta estratégia que contemplam formas de contrariar este problema (por exemplo focando a redução de impostos nas classes mais baixas, que terão mais tendência a gastar imediatamente o aumento marginal de retorno).


Resta dizer que o plano de estímulo que acabou de ser aprovado para os Estados Unidos consiste em cerca de 500 biliões de dólares de investimento em obras públicas e cerca de 250 biliões de dólares em redução fiscal, tendo passado dos quase 900 biliões inicialmente propostos pela administração de Obama para pouco mais de 750 biliões. Esta redução foi vista por muitos como uma forma de os chamados “centralistas” (senadores republicanos com postura de certa forma mais próxima da dos democratas, necessários para a aprovação do documento no senato) mostrarem serviço, dada a aparente superficialidade das modificações face à versão original. Os mercados reagiram positivamente à aprovação do plano de estímulo (que se chegou a pensar que pudesse nunca vir a ser aprovado…), com uma subida de cerca de 1%.

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